O Brasil é reconhecido pelas instâncias internacionais como tendo o melhor programa de Aids do mundo. No entanto, este estudo nos leva a uma reflexão sobre sua sustentabilidade e sobre sua vulnerabilidade, uma vez encerrados no próximo ano os empréstimos do Banco Mundial.
Este estudo é uma pesquisa junto a ONGs e programas governamentais nas regiões Sul e Sudeste, onde a epidemia ainda se concentra. Foi realizado durante o ano de 2004, antes da última mudança de coordenação do programa de Aids do Ministério da Saúde.
No Brasil, o primeiro caso de Aids foi notificado em 1980. No entanto, de acordo com pesquisas científicas, o HIV foi introduzido no país na década de 1970. Como nos demais países, o principal meio de transmissão foi através de contatos sexuais, embora a via de transmissão sanguínea também seja importante para compreender o perfil da epidemia no país.
Apesar dos conhecidos avanços do programa da Aids, o Brasil continua ocupando o primeiro lugar em número de casos de Aids na América Latina. Estima-se que mais de 600 mil pessoas estão infectadas pelo HIV, o que significa 0,65% de prevalência nacional.
Até 1992, não havia recursos técnicos e financeiros significativos para o Programa Nacional e a resposta mais efetiva da assistência a pessoas vivendo com Aids e contra a discriminação vinha das ONGs e principalmente dos grupos gays.
A visibilidade crescente da epidemia no Brasil, classificado em quarto lugar no mundo, fez com que a ajuda internacional chegasse ao país, oferecendo recursos e assistência na busca de alternativas capazes de conter a epidemia.
Em 1994, após árduas negociações, foi aprovado o empréstimo do Banco Mundial para o Programa Nacional que originou o Projeto Aids I, considerado
o marco divisor entre uma década de ativismo, de busca de políticas públicas e a eficácia de uma resposta adequada à epidemia no Brasil.
Da notificação do primeiro caso de Aids em 1982 até o presente momento, a epidemia esteve concentrada nas área metropolitanas de São Paulo e do estado do Rio de Janeiro, que correspondiam a 67% do total de casos de Aids do país.
Embora a epidemia tenha se deslocado para outras áreas urbanas, estudos epidemiológicos destacam que das cem cidades com maior número de casos de Aids, mais de oitenta estão nas regiões Sudeste e Sul do país, o que significa 84,8% dos casos. Por causa deste fato, o presente estudo analisa a resposta nessas duas regiões geográficas.
O estudo teve como um de seus principais objetivos fazer uma análise aprofundada do impacto do convênio de empréstimos do Banco Mundial ao governo e seu aporte às ONGs/Aids, para una resposta conjunta à epidemia.
A metodologia utilizada foi a de entrevistas em profundidade com os responsáveis de 40 ONGs/Aids, coordenadores de programas governamentais de estados das duas regiões e técnicos do Programa Nacional de Aids, durante o período de fevereiro a maio de 2004, com perguntas que faziam uma reflexão sobre os seguintes aspectos:
- Qual era o papel do governo e das ONGs e até que ponto as ONGs tinham sido transformadas numa agência do governo?
- Em que medida o financiamento favoreceu a perda de autonomia das ONGs?
- Houve empoderamento do movimento social e dos grupos considerados marginais após o financiamento?
- O financiamento trouxe visibilidade para esses grupos em defesa de seus direitos?
- Houve mudanças nas políticas públicas e no ativismo?
- Houve impacto na sustentabilidade técnica, política e financeira da resposta à epidemia?
Também foram tratadas as dificuldades da colaboração de trabalho entre o governo e as ONGs, ante o fenômeno identificado como a “ditadura dos projetos”, que continua sendo uma preocupação constante do movimento social da Aids, assim como outros questionamentos de igual relevância presentes no estudo.
Os resultados obtidos chamam a atenção, principalmente a sustentabilidade da resposta nacional à epidemia quando o governo decidiu não solicitar recursos do Fundo Global de Luta contra a Aids, na época em que foi instituído, e continuar com um novo empréstimo do Banco Mundial. Depois desse terceiro empréstimo, foi decidido prosseguir com fundos locais, como se no Brasil, país de referência, a epidemia já estivesse controlada.
O marketing de "melhor programa de Aids do mundo" confundiu as instituições envolvidas na resposta local à epidemia e ofuscou a manutenção de uma vigilância maior, para que as ações bem-sucedidas pudessem continuar de forma sustentável, além de enfrentar alguns desafios, tais como a política de distribuição "gratuita" de medicamentos, incluindo também as populações periféricas e mais vulneráveis, sem acesso a serviços de saúde; a redução dos efeitos colaterais dos anti-retrovirais nas pessoas que só podem fazer o tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) do governo; garantia de qualidade e liberdade no processo de descentralização das ações de prevenção, vigilância e assistência, por meio de recursos oficiais de governo, sem interferência de políticas partidárias; e a busca de recursos financeiros para a manutenção de ações comunitárias em detrimento do marketing de "melhor programa de Aids do mundo" e da ordem mundial que privilegia os dados quantitativos e a escolha de regiões mais emergentes, em prejuízo de outras onde a epidemia está subestimada.
Na íntegra do estudo, os autores tentam reproduzir as conclusões das ONGs e dos técnicos governamentais, apresentando algumas das lições extraídas de um trabalho de colaboração entre o governo e a sociedade civil, com o apoio de organizações internacionais, como o Banco Mundial, para enfrentar a epidemia de Aids.